CONFUNDIR-SE É UM ERRO. CONFUNDIR É PRECEITO DE TALENTO INCOMPREENDIDO.

10 Razões para ler Osman Lins

"A literatura nasce da calma, do trabalho persistente e lento de muitas recusas." (Osman Lins).

Lourival Holanda
Univ. Federal de Pernambuco – UFPE

1. Porque o filme de Guel Arraes, Lisbela e O prisioneiro, trouxe  o grande público para mais perto de Osman Lins. E Pernambuco redescobriu com surpresa e satisfação um grande escritor. No entanto, esse público  entrava por uma porta lateral: a melhor produção de Osman Lins está em Nove, Novena, e em Avalovara. (O grande escritor argentino Julio Cortazar dizia que se tivesse escrito Avalovara, não precisaria escrever mais). Não e Osman Lins um escritor de amenidades, mas um modelo de escritor engajado: na e pela literatura, no compromisso com a forma - sem maiores concessões. Talvez em situação similar a de Julien Gracq, na França: sem alardes, um c1assico desde cedo. As qualidades mais valiosas de um livro são como que secretas e se revelam aos poucos, sempre com parcimônia (Avalovara. SP : Melhoramentos. 1973.p39). Osman conjugava, num modo feliz, experimentação e corte clássico. E assim, tendo driblado magistralmente os dois riscos da  literatura moderna:  a) a do formal ismo, pelo extrema da experimentação o que finda por desaguar no abstracionismo;  b) a de certo naturalismo jornalístico que beira a propaganda ideológica. Ha, em Osman Lins uma
deliberada exigência com as palavras de luta (Eduardo Galeano). O interessante em Osman é manter o interesse romanesco, ao mesmo tempo em que revona técnicas e convenções estilísticas. A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, também  é a bala dos  desarmados e o bicho que descobre as carcaças podres (Avalovara.SP : Melhoramentos. 1973. p261).


2. Porque sua indignação nunca se arregimentou, cego, a qualquer credo político, sacrificando sua lucidez.  Não hipotecou sua independência a comodidade de nenhuma comunidade de ideias. O domínio da arte não deve ser posto sob o domínio do Partido. Por mais legítima que seja a causa, a literatura não deve estar submetida. E, no entanto, Osman crê que a atenção dada as palavras e uma forma de agir sobre o real e sabre si próprio. Lida o escritor, na opressão, com um bem confiscado (Avalovara.p.261). Novalis quer que seja 0 escritor um homem movido pela linguagem. Osman é assim, um compromisso com a palavra, a fim de revisar valores, pesar  o imponderável, desfiar enfim o tecido das ideias e avançar um pouco na obscuridade das coisas.



3. Porque, a despeito das dificuldades financeiras, soube estabelecer para si duras prioridades.  Osman foi bancário, numa época em que isso representava estabilidade e prestigio, no mercado de trabalho. Desembaraçou-se de tudo para assumir-se escritor, à part entière. 
Em vinte anos, segundo calcula, passou lidando com fichas, memorandos, arquivos, cifras indicativas de fortunas alheias e quase sempre iníquas. Pagou a renuncia a comodidade, para tentar dar a sua vida um sentido, uma significação pela literatura - e assim evitar ser,

no espelho de cada manha, apenas um sobrevivente de si mesmo, quando 0 cansaço vão de um ritmo inútil já não desposa a alegria intensa de estar vivo. A literatura é um antídoto, quando urge reagir ao desencanto do mundo - esse veneno nas veias da vida.


4. Porque soube elevar a estética a uma dimensão ética. Osman luta contra a desvalorização da linguagem - uma das enfermidades de nosso tempo - para restabelecer a dignidade deste instrumental de transformação: num escritor, sua linguagem e sua ação. A condição do escritor, antes, será a de um perpetuo combatente, a de um homem sempre em luta consigo próprio e com um mundo que jamais o aceita integralmente; que nunca poderá aceitá-lo.

5. Porque  ele e o terceiro momenta marcante da literatura moderna no Nordeste. O primeiro e Manuel Bandeira, contra o abuso do verso feito pela escolástica parnasiana. Bandeira areja a poesia em novos ritmos que o verso, agora despregado do antigo molde, desfralda em bandeira. O segundo e João Cabral na luta contra as amarras da convenção poética, optando por um rigor formal para devolver ao verso seu vigor constitutivo. o terceiro momento é Osman Lins, que vai fazer o texto de prosa recompor com a poesia, tornando tênue, senão falsa, a fronteira entre ambas - a poesia livre que irrompe a cada instante, no dizer de Antonio Candido. O texto de Osman e antes de tudo, poético - tenta dar a ouvir a secreta melodia (sustenida) existente por entre as dissonâncias do real.

6. Porque ele respondeu, superando, a proposta do romance francês. As coisas, tema  privilegiado da narrativa francesa para exorcizar o excesso de psicologismo do romance tradicional, adquirem em Osman Lins uma carga de poeticidade incomum. Como quando o narrador, no conto o pássaro transparente, interroga as mãos da amada, aquela que desprendeu-se de todo supérfluo para seguir a arte, e as contrapõe com as suas, afeitas as posses: Ela amestrou as mãos de sua juventude, fez com que lhe pertencessem. Quanto a mim - estas, cautelosas, quase sempre fechadas, não sei que sutil e laborioso processo as engendrou - em que armário do tempo, em que espessa noite de interrogações perdi as minhas? (Nove, novena. Rio: Guanabara, 1987.p. 20). O  leitor deduz, pelo viés poético, o intuito de Osman em mostrar as mãos enquanto raízes da alma: Lição antiga, a de que todo apego nos define. Tento construir, obedecendo a uma estética rigorosa, um mundo rebelde, imaginário, única maneira a meu ver de sondar as profundezas do real.

7. Porque ele esperou a sagração do tempo, madurando a acolhida atual e a vindoura. Traduzido na Alemanha, em 74, e na Itália, em seguida, pouco depois, era a vez de os Norte americanos terem contato com Avalovara. O crítico e tradutor norte-americano Gregory Rabassa colocava a poética de Osman, na America Latina, ao lado  de Garcia Marquez e de Julio Cortazar. Na França, um crítico bastante considerado, Maurice Nadeau, julga  Nove, Novena, um dos melhores textos aparecidos naquele momento, entre livros franceses e estrangeiros. Entre nos seu reconhecimento veio cedo, com a admiração de Antonio Candido que em Avalovara via na literatura brasileira atual um momento de decisiva modernidade.
Com a crítica aguda de João Alexandre Barbosa (Ele não conta: escreve) ou o trabalho lustral na crítica osmaniana, de Ana Luiza Andrade (Crítica e criação. S. Paulo: Hucitec. 1987). Cabe ainda lembrar a argúcia crítica de Gabriela Cariello, na Argentina, mostrando o modo como Osman resolve impasses narrativos contemporâneos.

8. Porque com sua literatura alargamos o conceito de escritor nordestino. Osman Lins é um escritor a partir do nordeste. Regional, por pertencer a um solo, mas sem peias. Regional por pertencer a um chão, inda que sempre incerto, na literatura contemporânea, mas não aos limites de uma fronteira. Há um forte coeficiente de desterritorializacão na poética de Osman. Os "classificadores" da historia literária, acostumados com um certo registro do romance regionalista de 30, tiveram dificuldade em etiquetar Osman como autenticamente regional. Essa incompreensão se vai dissolvendo e absorvendo um critério mais literário: importa, no texto, a transformação do dado, mais que sua descrição sociológica. A pesquisa formal em Osman Lins parte de chão nordestino - mas escapa ao lugar-comum, à paroquialização. Ele e um escritor antenado: e mais atento ao possível que ao passado. Assume o desafio contemporâneo de pretender ao universal sem sacrificar o específico. Sem reduzi-lo a um signo imobilizado e imobilizador (mandacaru, chapéu de couro), na definição de cultura nordestina à literatura das secas ou aos retirantes de Portinari. Como não se pode, por um momento amargo, definir assim a vida, sempre mais larga.

9. Porque ele fazia distinção entre a seriedade da literatura, na dedicação diuturna ao ofício da escritura, e a da sisudez acadêmica que faz     parecerem, os teóricos, teólogos arrogantes. Osman não rejeita o rigor, mas refuta o terrorismo das teorias, que findam ateando mais lenha a fogueira das vaidades literárias, quase sempre, de brilho breve - que seduzem, mais que norteiam. Talvez seja só a homenagem que a fumaça presta à chama comum ao meio, entre literatos hábeis e enganosos, ele concebe a literatura como um empreendimento espiritual que poderá  vir a ser - e espero firmemente que o seja - fecundo para os meus semelhantes. (Escreveu isso em 66, num documento para o Banco do Brasil, que nunca entenderia a gravidade de um tal projeto). Quando, nos idos de 70, um crítico louvava as frases, as palavras de Clarice Lispector, ela fica desapontada: havia escrito para lhe dizer alguma coisa. As palavras não estavam ali como mero jogo verbal. Nenhuma, mas nenhuma mesma, das palavras do livro foi jogo, dizia Clarice, resistindo à redução de seu prop6sito a mero brilho verbal- quando o que ela pretende e aderir ao que existe por meio de uma visão total das coisas (Jornal do Brasil). Crônica. Fev / 70). Osman participa desta exigência de quem se contrapõe ao caos, sempre mais próximo, criando, com resistência e rigor, uma alegria mais intensa que satisfação.



10. Porque para ele o trabalho da literatura era um trabalho do homem sobre si mesmo, para exconjurar o absurdo buscando a alegria. Escrever: um contínuo ato de amestramento e descoberta. Em dado momento Osman diferencia os escritos cursivos dos de bordejar. Aqueles trazem informes já previamente sabidos; estes, os de bordejar, que definem a escrita de Osman, são aqueles nos quais o escritor avança e descobre, revela-se, devassa territórios que desconhecia, podendo suceder-Ihe, durante a realização da obra, chegar a evidencias e surpresas que lhe ameaçam os alicerces da vida.(Guerra sem testemunha. Martins. SP. 1969). A alegria de viver deve ser uma exigência que se sente como perfeitamente absurda e indefensável; no entanto, há os que crêem na literatura enquanto uma possível reserva de sentido. E crêem poder juntar a alegria - o sal sempre necessário - alguma lucidez. E o que faz 0 diferencial da prosa de Osman Lins.